
No One
As mudanças acontecem mais rápido do que a nossa capacidade de nomeá-las. Novas tensões, novas formas de vínculo, novos ritmos, hiperconexão, realidades híbridas, práticas tecnológicas ainda sem referência, ansiedade por desempenho, exaustões e, ainda assim, nos faltam palavras para explicar tudo o que já estamos vivendo.
Sabe aquela aquela sensação de “tem algo aqui, mas não sei nomear”? A sensação difusa de que “algo está acontecendo” é, muitas vezes, só isso: uma sensação. Não é que necessariamente o fenômeno seja complexo demais, mas a falta de nome cria a ilusão de que não sabemos o suficiente. E, de fato, não sabemos: porque não conseguimos organizar essa realidade dentro da linguagem que herdamos.
Como diz Rita Von Hunty, vivemos constantemente o esforço de “organizar o mundo com as ferramentas que temos”, mas essas ferramentas muitas vezes não dão conta do presente.
Novos hábitos surgem, nossas relações se transformam, tecnologias reconfiguram o cotidiano e, ainda assim, falta vocabulário para descrever o que estamos vivendo. E quando não conseguimos nomear, não conseguimos compreender. Criar vocabulário é criar referência, identidade e possibilidade de um novo modo de ver as coisas. Nomear algo é dar espaço para existir. É legitimar experiências que antes pareciam individuais, confusas ou inomináveis.
Existe uma relação afetiva na capacidade de nomear algo com precisão. Por exemplo: saber o nome de uma planta muda nossa relação com ela. Reconhecer o nome de uma sensação transforma nossa forma de lidar com ela. Dar nome a um fenômeno social cria capacidade de agirmos sobre ele.
A quantidade de fenômenos novos está crescendo mais rápido do que nossa capacidade de descreve-los. A cientista cognitiva Lera Boroditsky, no seu TED Talk, explica que “línguas diferentes fazem as pessoas notar coisas diferentes”. Ou seja, a linguagem molda a nossa percepção.
A escolha das palavras altera literalmente o que o cérebro percebe. Ou seja, o que não conseguimos nomear, não conseguimos enxergar. A língua não descreve apenas o mundo, ela constrói possibilidades de mundo.
Para o escritor e filósofo Edouard Glissant, a linguagem é um território vivo. Ele defende a ideia da "poética da relação": toda língua viva é permeável, em transformação, capaz de incorporar o que antes não cabia. As línguas se tornam mais ricas quando se abrem ao que antes não tinha nome. Para ele, a vitalidade de uma linguagem está na sua abertura ao que chega, ao inesperado, ao estrangeiro, ao que desestabiliza as formas anteriores. As línguas vivas não têm medo de expandir-se.
É exatamente isso que começa a acontecer agora: como nossas experiências, a linguagem ultrapassa o repertório herdado, e novas palavras começam a nascer.
Um exemplo disso é a discussão sobre as imagens feitas por IA. Como chamá-las? Arte? Ilustração? Simulação? Até que um novo termo emergiu: PROMPTOGRAFIA. Esse é um termo criado para definir imagens criadas juntos com agentes de IA. Como destacou a Fast Company Brasil, a palavra sublinha “a intencionalidade e criatividade envolvidas no processo”. Ou seja, o termo surgiu porque não tínhamos nome para descrever esse tipo de autoria híbrida entre pessoa e máquina. O nome não resolve tudo, mas evidencia uma intenção: é preciso reconhecer que há um processo criativo por trás das interações com a máquina.
As palavras criam contornos. E com isso, nascem novos entendimentos.
Criar palavras é criar referência, identidade e possibilidade de ação. É, de certo modo, dar forma ao que ainda está disperso. Por exemplo, no processo de pesquisa de tendências, encontrar novos nomes para o que está sendo mapeado é também o que auxilia a criação de novos radares de comportamentos emergentes: o nome ajuda a dar forma.
Quando não nomeamos, deixamos que outros nomeiem por nós. E isso define quem conduz as narrativas e interpretações do mundo. Precisamos de termos que legitimem experiências contemporâneas, que nos permitam conversar sobre elas, compartilhá-las, narrá-las e, principalmente, agir sobre elas.
Para isso, precisamos fazer perguntas como: “o que o usuário está vivendo que ainda não tem nome?” ou “quais fenômenos da experiência estão invisíveis justamente porque não foram nomeados?”. Se não conseguimos nomear, não conseguimos medir e temos dificuldade de explicar. O que emerge desse processo não é apenas linguagem: são as visões de mundo.
O que estamos deixando de perceber simplesmente porque ainda não construímos linguagem?
Até a próxima mordida
Por Julia Beatricce Duso